terça-feira, 3 de novembro de 2009

O beijo e outras histórias

Há alguns meses eu li um livro chamado "Para ler como um escritor", de Francine Prose. Não vou entrar em detalhes sobre ele agora, mas basicamente o livro apresenta conceitos de escrita através de exemplos de textos de escritores consagrados. Dentre os exemplos usados, aparecem vários textos de Tchekhov, indicado no livro com o um dos melhores escritores de contos da história.

Como nunca tinha lido nada de Tchekhov até então, resolvi comprar uma seleção de contos e adquiri "O beijo e outras histórias", da Editora 34 (tradução de Boris Schaiderman). É um conjunto de seis contos:

- O beijo
- Kastchtanka
- Viérotchka
- Uma crise
- Uma história enfadonha
- Enfermaria n. 6

São sensacionais. Não apenas pelos enredos e pelas personagens, mas pela clareza e pela facilidade com que Tchekhov entra na cabeça das pessoas e descreve com enorme precisão situações e sentimentos, expressando, em palavras, pensamentos que você acreditava serem só seus e apresentando pessoas que você tem certeza de que já conheceu.

Eu estava iniciando a leitura de "Enfermaria n. 6" no dia em que o helicóptero da polícia foi abatido no Rio de Janeiro. Em meio a toda a comoção com a tragédia, quando passa pela cabeça do cidadão o desejo da resposta violenta justificada, eis o que me aparece no texto de Tchekhov: "...E não será ridículo cogitar de justiça, quando toda violência é recebida pela sociedade como uma necessidade razoável e oportuna, e quando todo ato de piedade, por exemplo, uma sentença absolutória, provoca uma verdadeira explosão de sentimento de vingança insatitsfeito?". Faz pensar.

E que estudante universitário nunca encontrou pela frente um Professor Nicolai Stiepânovitch ("Uma história enfadonha"), ao qual precisou pedir uma nota a mais para ser aprovado no curso e recebeu uma resposta do tipo: "- A meu ver, o melhor que tem a fazer agora é deixar de uma vez a Faculdade de Medicina. Se, com a sua capacidade, não consegue passar no exame, provavelmente não tem nem vontade nem vocação para ser médico". Melhor estilo Giacaglia ou Clemente Greco, para quem sabe do que estou falando.

É muito fácil identificar e identificar-se com as personagens de Tchekhov e isso, somado à profundidade das reflexões que apresenta, tornam a leitura extremamente prazerosa e recompensadora.

É também fácil relacionar Tchekhov a Machado de Assis. São praticamente contemporâneos e possuem estilos parecidos, pelo menos para mim, que sou absolutamente leigo em ambos. Acontece que havia lido, ainda no 1o semestre, uma coletânea de Machado ("Melhores Contos"), e não há como não ver, por exemplo, semelhança óbvia entre "O alienista" e a "Enfermaria n. 6", mesmo que não haja possibilidade do texto de Machado, escrito 10 anos antes, ter influenciado Tchekhov (como é afirmado no apêndice).

Tchekhov era médico, muito interessado em psiquiatria, mas igualmente obcecado pela Justiça. Pelo menos uma das obsessões acaba aparecendo em cada conto, o que sempre acaba conferindo-lhes uma dimensão mais profunda e mantendo a atualidade e a relevância dos textos.

Para quem não acredita ser possível encontrar profundidade em contos curtos, que podem ser lidos em uma noite, é a cura. E não é por serem profundos, que os contos são pesados ou difíceis. Repito: nunca tinha lido nada dele, mas a surpresa foi excelente.

OBS - Para um bom texto sobre o "Para ler como um escritor", você pode acessar o blog "Libru Lumen", em: http://www.jefferson.blog.br/2008/05/para-ler-como-um-escritor-de-francine.html

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